“…Sentemo-nos ‘à mesa’ e contemos tristes histórias sobre a morte dos reis…”

A citação adaptada do trecho do Livro Ricardo II, de William Shakespeare, no título deste artigo, abre uma nova categoria no Um Blog Sobre Café: “Enquanto tomamos um café…”. Nele vamos explorar, além é claro de assuntos ligados ao universo cafeeiro, também temas que pesquisamos na internet ou conversamos em rodas de amigos enquanto degustamos uma boa xícara de café.

“…sentemo-nos no chão e contemos tristes histórias sobre a morte dos reis”, versão original e traduzida da obra de Shakespeare, são palavras que ressoam não apenas como poesia, mas como um convite à reflexão sobre os ciclos de poder e a inevitável transitoriedade dos grandes nomes públicos. O mundo volta os olhos para o falecimento do Papa Francisco, uma figura cuja liderança inspirou milhões — e, sem discutir o acontecimento em sua dimensão religiosa, nos deparamos mais uma vez com a questão ancestral: o que esperar, afinal, daqueles que conduzem povos, guiando-os pelo imperfeito caminho da história?

Em um tempo em que a ética é frequentemente é solapada por interesses momentâneos, recordar a necessidade — quase sempre esquecida — de líderes de princípios sólidos, parece não apenas um lamento, mas um chamado. Este artigo é uma proposta para, juntos, pensarmos sobre o valor dos princípios na esfera pública e a importância da integridade que, como o próprio café, deveria ser elemento indispensável a todas as mesas de decisões.

Assim como na cena melancólica de Ricardo II, quando nobres ingleses sentam-se ao chão para enumerar as quedas dos reis, também a sociedade contemporânea, vez ou outra, se vê confrontada com o silêncio de uma liderança que parte. Há uma espécie de suspensão coletiva: as pessoas olham para os ‘jornais’ tentando enxergar sentido, perguntando-se se a ausência daquele nome trará consigo mudanças profundas ou apenas reforçará a sensação de que o mundo carece de figuras realmente transformadoras.

O falecimento do Papa Francisco, noticiado em todos os cantos do globo, vale por si só como símbolo deste sentimento universal. Independentemente de credos, muitos enxergaram no Papa não apenas o chefe de uma instituição religiosa, mas um líder global em tempos de crescente polarização, alguém que buscava traduzir valores perenes em atos concretos, que optou, dentro de suas possibilidades, por gestos de humanidade e simplicidade. Ao perdermos alguém assim, emerge uma discussão fundamental: ainda existe espaço — e necessidade — para líderes cuja postura é guiada por princípios sólidos, por ética inegociável, por aquela honestidade que não se dobra ante as circunstâncias?

Olhar para trás sempre foi um instinto humano diante da ausência; buscamos, entre as ruínas das narrativas passadas, exemplos de quem teria vivido e governado com honra. O próprio Shakespeare, ao escrever sobre reis e reinos, revelou que o esplendor de uma coroa nada significa quando divorciado do peso da responsabilidade moral. Outros grandes nomes da história também ilustram a força da liderança fundamentada em princípios. Nelson Mandela, após anos de prisão, optou pela reconciliação em vez da vingança, tornando-se símbolo de um novo capítulo para a África do Sul. Gandhi, com sua austeridade, transformou resistência e ética em força política. A Rainha Elizabeth II — em outro extremo de tradição e tempo — ilustrou como a continuidade e o compromisso firme com deveres públicos também são formas de liderança resiliente.

Mas não é apenas nos momentos épicos ou nos nomes eternizados que reside a lição sobre ética pública. Diversos pensadores cristãos, como Santo Agostinho, refletiram sobre o papel dos líderes no mundo: “sem justiça”, afirmava ele, “um reino se transforma em mera associação de criminosos”. C.S. Lewis, observador perspicaz da condição humana, lembrou que “integridade significa fazer a coisa certa, mesmo quando ninguém está olhando.” Dietrich Bonhoeffer, mártir do século XX, acreditava que “a voz da consciência é indispensável em tempos de crise, e que o silêncio dos justos é, por si, uma forma de cumplicidade”. São Tomás de Aquino ensinou ainda que “a grandeza do homem público não reside na busca do benefício pessoal, mas no serviço ao bem comum com retidão”.

Quando nos debruçamos sobre o presente, é inevitável a sensação de vazio — ao menos parcial — no campo das lideranças públicas. Casos de corrupção realçados quase diariamente, promessas traídas no altar de interesses momentâneos, discursos que ressoam como eco de conveniências. Tudo isso compõe um mosaico que desafia a esperança dos cidadãos. Desde sempre, assistimos a líderes de todos os continentes envolvidos em polêmicas éticas: contratos viciados, confidências traídas, privilégios defendidos como se fossem direitos legítimos. Não é preciso, neste texto, detalhar episódios específicos; basta acenar à atmosfera de desconfiança que paira sobre tantos sistemas políticos, econômicos ou institucionais.

Esse quadro, longe de ser um convite ao ceticismo inerte, deve funcionar como despertador para a importância dos valores inegociáveis. Não se trata apenas de exigir de quem está ao topo da pirâmide social ou política posturas irrepreensíveis. Somos todos, de certo modo, corresponsáveis pela qualidade daquilo que demandamos e valorizamos em nossos representantes. É natural sentir saudade de figuras que pareciam maiores do que a história. Mas talvez o apelo mais profundo seja este: que o espírito de integridade, justiça e compaixão possa inspirar não só reis, papas, presidentes ou rainhas, mas também cada cidadão em seu pequeno território de influência.

É nessas horas que o exemplo — sempre silencioso e persistente — daqueles líderes que optaram pela dignidade que faz a diferença. Mandela escolheu não perpetuar o ciclo de ódio em seu país; Gandhi transformou a não-violência em instrumento de revolução. A Rainha Elizabeth II, ao simbolizar a continuidade diante de crises, ensinou sobre a paciência e o respeito às instituições. Estas lideranças, cada uma a seu modo, trouxeram ao cenário mundial uma verdade essencial: grandes mudanças não são feitas apenas pela força, mas pela fidelidade a princípios que ultrapassam o tempo e a fama.

No entanto, é preciso resistir ao saudosismo que paralisa. A cada novo ciclo, a sociedade se vê chamada a formar, reconhecer e sustentar exemplos éticos. Os prejuízos de uma cultura sem valores são sentidos por todos: do cidadão anônimo ao mais poderoso. A ética pública não é um favor ou adereço, mas uma necessidade prática para a saúde de qualquer coletividade. Como disse Hannah Arendt, pensadora do século XX, “o que separa as tiranias das sociedades justas é justamente a persistência da responsabilidade individual e coletiva”.

Nada disso diminui o valor do gesto cotidiano: a honestidade no trato, a fidelidade à palavra dada, a recusa — mesmo silenciosa — de participar de conversas ou práticas que violam princípios. São esses gestos mínimos, reiterados por milhões, que formam o ambiente onde a liderança de verdade pode florescer. Filosofia prática, nesse contexto, não é apenas o estudo abstrato do certo e do errado, mas o exercício diário da consciência em meio às pequenas escolhas.

Quando as notícias trazem o fim de uma era, como acontece com o falecimento de papas, rainhas ou estadistas, experimentamos o entendimento inevitável da impermanência. Nenhuma liderança, por melhor que seja, é eterna. É saudável, contudo, que nesses momentos a sociedade pare, converse — nem que seja durante um café — sobre o tipo de liderança que merece ser lembrada, cultivada e exigida.

Cabe-nos, então, cultivar memória e esperança. Memória para não esquecermos o poder do bom exemplo; esperança para não nos conformarmos com menos do que a época exige. Se o presente parece desprovido de figuras à altura dos desafios, talvez seja sinal de que é precisamente agora que mais precisamos, em nossas conversas e escolhas, resgatar velhos princípios para tempos novos.

A morte dos reis, na pena de Shakespeare, simbolizava não só o fim de governos, mas o recomeço da busca pelo sentido, pela virtude, pelo bem comum. Esse é, no fundo, o convite — silencioso, insistente — que ecoa junto ao tilintar das colheres nas xícaras nos cafés do mundo: contar histórias não para cultivar nostalgia, mas para aprender, para inspirar, para renovar.

Olhando para o futuro, com esperança, talvez possamos enxergar a ascensão de novas lideranças que, longe de perfeição irrealizável, sejam marcadas pela coragem de manter a ética mesmo quando isso parece pouco rentável. Pode parecer utópico, mas grandes transformações — individuais ou coletivas — sempre começam de ideais que insistem em sobreviver ao tempo, como sementes aguardando a hora certa para brotar.

Nosso papel como observadores, ou simplesmente como cidadãos atentos, é recusar o conformismo diante da crise de princípios. É pedir mais, cobrar mais e também dar o exemplo. Ao lembrar de figuras como o Papa Francisco, cuja liderança foi marcada por gestos simples, firmeza ética e abertura ao diálogo, renovamos em nós mesmos o compromisso de buscar e promover um modelo de retidão. Líderes assim demonstram que é possível conciliar humildade e coragem, diálogo e convicção, um legado que transcende cargos e fronteiras. Porque, ainda que a história reserve lugar aos grandes nomes, ela se alimenta diariamente das escolhas anônimas que lançamos, como grãos, nas terras do cotidiano.

Agora, fica o convite: enquanto tomamos nosso café, que exemplos de liderança você já presenciou e gostaria de compartilhar? Qual líder — seja alguém famoso ou alguém próximo de sua vida — marcou positivamente a sua trajetória? Que valores você considera inegociáveis em quem ocupa um cargo de destaque? Já viveu um momento de reflexão profunda em rodas de café, diante dos desafios de nosso tempo?

Conte sua história, enriqueça nosso diálogo. Porque liderança ética não é um privilégio de poucos: é, antes de tudo, missão de todos.

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