Quando Nada Mais Resiste: O Cheiro e o Gosto do Café na Alma
“Mas quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis mas mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais…” (Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust)
(texto dedicado ao amigo Roberto Ticoulat)
O vapor sobe em espirais delicadas da xícara, trazendo consigo um aroma que é quase um abraço. Lá fora, a chuva talvez tamborile na janela, ou talvez o sol da manhã comece a dourar o dia. Não importa o cenário, há algo de mágico nesse instante suspenso no tempo, nesse ritual tão nosso de tomar um café. É mais que cafeína despertando o corpo; é um convite silencioso para a alma se aquietar, para a mente vagar por paisagens interiores, muitas vezes tingidas pelas cores suaves da nostalgia e pelo toque agridoce da saudade. Quem nunca se pegou sorrindo sozinho ao lembrar de um tempo que não volta mais, evocado pelo simples cheiro do café coado na hora? Quem nunca sentiu o coração apertar de saudade ao segurar uma caneca que remete a alguém especial, a um lugar querido, a uma versão de nós mesmos que ficou para trás? Nostalgia e saudade são sentimentos profundamente humanos, fios invisíveis que tecem a tapeçaria da nossa existência, conectando presente, passado e até mesmo os futuros que sonhamos.
E o café? Ah, o café… No Brasil, ele transcende a condição de simples bebida. É confidente, é elo, é pretexto para encontros, é símbolo de hospitalidade e aconchego. É, muitas vezes, o gatilho inesperado que abre as comportas da memória afetiva, permitindo que sentimentos adormecidos venham à tona, nos lembrando de quem somos, de onde viemos e das histórias que nos moldaram. Neste espaço, “Enquanto tomamos um café…”, costumamos divagar sobre a vida, a cultura, o bem-estar, sempre com o nosso querido companheiro fumegante ao lado. Hoje, o convite é para mergulhar um pouco mais fundo nesses sentimentos que tantas vezes nos visitam durante essa pausa reconfortante. Vamos explorar juntos como o café se entrelaça com a nostalgia e a saudade, como ele se torna palco e personagem dessas emoções que, embora às vezes melancólicas, carregam a beleza de uma vida vivida e sentida intensamente. Prepare sua xícara preferida, acomode-se e venha conosco nesta viagem sensorial e emocional.
Antes de mais nada, vale a pena nos aproximarmos um pouco mais da nostalgia e da saudade, compreendendo suas nuances. A nostalgia é como encontrar uma fotografia amarelada no fundo de uma gaveta, um sussurro do passado que nos alcança no presente. Derivada das palavras gregas para “retorno” (nostos) e “dor” (algos), ela carrega essa dualidade: uma leve dor pela passagem do tempo, mas também um caloroso desejo de revisitar momentos que nos foram caros. Não se trata de querer voltar fisicamente, mas de reviver a sensação, a atmosfera daquele tempo, muitas vezes idealizado pela distância e pelo afeto. É aquele sorriso que escapa ao ouvir uma música antiga, o conforto ao lembrar do cheiro da casa da infância, a sensação agridoce de folhear um álbum de fotos. A psicologia nos diz que essa visita ao passado pode ser benéfica, fortalecendo nossa identidade, aumentando a sensação de conexão social e até nos ajudando a enfrentar desafios presentes com mais resiliência. A nostalgia nos lembra das nossas raízes, das alegrias vividas, e nos assegura de que nossa história pessoal é rica e significativa.
Se a nostalgia é um mergulho em tempos passados, a saudade é a consciência aguda de uma ausência no presente. É um sentimento que ressoa com particular intensidade na alma lusófona, uma palavra que muitos dizem não ter tradução exata, tamanha a sua profundidade cultural. Saudade é sentir falta. Falta de alguém que partiu, de um lugar que ficou distante, de um abraço que não pode ser dado, de um tempo que findou… É a melodia melancólica que toca quando o coração reconhece um vazio deixado por algo ou alguém muito amado. Filósofos e poetas portugueses exploraram a saudade como um sentimento existencial, uma ponte entre o terreno e o divino, o transitório e o eterno. Ela não é apenas tristeza; pode haver uma doçura na saudade, um reconhecimento do valor daquilo que se perdeu ou está distante. É diferente da nostalgia, embora possam caminhar juntas. A saudade foca na falta específica, na ausência concreta, enquanto a nostalgia abraça um período, uma sensação mais difusa. Sentir saudade é manter vivo o vínculo afetivo, é carregar no peito a marca indelével daquilo que, mesmo ausente, continua a fazer parte de nós.
Compreender esses sentimentos é o primeiro passo para perceber como o simples ato de tomar um café pode se tornar um portal para essas dimensões tão íntimas da nossa experiência. Agora que reconhecemos a natureza da nostalgia e da saudade, podemos perceber mais claramente como o café, esse companheiro cotidiano, se torna um portal para esses territórios da alma. Ele não é apenas uma bebida; é uma chave sensorial e social que destranca gavetas esquecidas da memória. Nossos sentidos são guardiões poderosos de memórias. Um cheiro, um sabor, podem nos transportar instantaneamente através do tempo e do espaço, de forma muito mais vívida que uma simples recordação mental. E o café é mestre nessa arte. Quem não reconhece, de olhos fechados, o perfume inconfundível do café sendo coado, talvez num filtro de pano, como na casa da avó? Esse aroma, tão familiar e reconfortante, pode trazer de volta a imagem da cozinha antiga, o som das conversas matinais, a sensação de segurança da infância. É a nostalgia pura, destilada em vapor aromático. O sabor daquele café específico, talvez um pouco mais forte, ou adoçado na medida certa, também carrega ecos de outros tempos, de mãos que o prepararam com carinho. Cada método de preparo, cada grão, cada pequeno ritual em torno da xícara pode ser um fio que nos puxa para o passado. Aquele café da tarde, com bolo de fubá, na varanda, enquanto a luz do sol se despedia… Aquele primeiro espresso compartilhado num encontro especial… São viagens sensoriais que o café nos proporciona, reacendendo memórias que pensávamos adormecidas.
Mais do que um prazer solitário, o café no Brasil é um ato social, um elo que une pessoas e tece relações. Os rituais em torno dele são parte intrínseca da nossa cultura e, por isso mesmo, fontes ricas de nostalgia e saudade. Pense no “cafezinho” depois do almoço, quase uma instituição nacional. É um momento de pausa, de conversa despretensiosa, de cumplicidade. A ausência desse pequeno ritual, talvez pela mudança de emprego, pela distância ou pela perda de alguém, pode despertar uma saudade imensa, não apenas da pessoa, mas daquele momento compartilhado, daquela sensação de pertencimento. A hospitalidade brasileira também se expressa frequentemente com uma xícara de café fumegante. “Aceita um café?” é quase uma senha para abrir as portas de casa e do coração. Lembrar-se desses momentos de acolhimento pode trazer uma nostalgia terna por essa generosidade. As reuniões familiares, as longas tardes de conversa na cozinha, as visitas inesperadas que sempre começam com um café… Todos esses encontros são marcados pela presença da bebida, testemunha silenciosa de risadas, confidências e despedidas. Quando esses encontros se tornam mais raros, ou quando as pessoas que os protagonizavam já não estão presentes, a saudade se instala, e o café, ao ser tomado sozinho, pode trazer à tona a lembrança vívida desses laços.
Além de despertar memórias e marcar encontros, o café se entrelaça com nossa própria identidade e oferece um refúgio singular, um espaço de aconchego para a alma. Para muitos brasileiros, o cheiro e o sabor do café são sinônimos de “casa”. Não apenas a casa física, mas o lar emocional, aquele lugar de conforto e pertencimento. É um gosto que nos acompanha desde cedo, que permeia o cotidiano e se torna parte de quem somos. O café simples, coado na hora, muitas vezes representa essa brasilidade autêntica, uma conexão com as raízes, com um modo de vida talvez mais descomplicado, evocando uma nostalgia terna por essa simplicidade. Para quem está longe de sua terra, de sua família, uma xícara de café pode ser uma poderosa âncora emocional. O sabor familiar em meio ao desconhecido funciona como um pequeno refúgio, um lembrete instantâneo da própria identidade cultural. Nesses momentos, a saudade do lar, das pessoas queridas, dos costumes, pode se intensificar, mas o café oferece também um consolo, um elo tangível com tudo aquilo que ficou para trás, mas que ainda vive dentro de nós. É como se, em cada gole, pudéssemos saborear um pouco da nossa própria história.
O ritual de preparar e saborear um café é, frequentemente, um convite à pausa. Em meio à agitação do dia, a xícara quente nas mãos nos convida a desacelerar, a respirar fundo, a voltar o olhar para dentro. Essa quietude momentânea cria um espaço propício para a introspecção, um terreno fértil onde os sentimentos mais profundos, como a nostalgia e a saudade, podem emergir sem pressa. Quantas vezes, no silêncio acompanhado apenas pelo vapor do café, não nos pegamos revisitando o passado, ponderando sobre as escolhas feitas, lembrando com carinho de quem fomos ou sentindo a falta de quem partiu? O café se torna, então, um companheiro silencioso dessa jornada interior. Ele não julga, não apressa; apenas aquece as mãos e a alma, oferecendo um conforto sutil enquanto navegamos pelas águas por vezes turbulentas da memória e da emoção. É um momento de reconexão consigo mesmo, onde o passado pode ser revisitado não como fuga, mas como parte integrante da nossa contínua construção pessoal.
Ao longo desta conversa, enquanto talvez nossas xícaras já tenham se esvaziado, percebemos como o café é muito mais do que um simples estimulante. Ele é um fio condutor de emoções, um catalisador de memórias, um espelho onde se refletem a doce nostalgia de tempos idos e a profunda saudade daquilo que amamos e que, de alguma forma, se faz ausente. Seja pelo aroma que destrava lembranças, pelos rituais que nos conectam ou pelo conforto que nos remete ao lar, o café se revela um cúmplice silencioso e caloroso da nossa jornada interior. Nostalgia e saudade não são sentimentos a serem evitados ou temidos. São, na verdade, testemunhas da riqueza da nossa história pessoal e coletiva, provas de que vivemos, amamos, sentimos e criamos laços. Honrar essas emoções é honrar a nós mesmos, é reconhecer o valor das experiências que nos moldaram e das pessoas que tocaram nossa vida. Revisitar o passado através dessas lentes afetivas não significa ficar preso a ele, mas sim trazer para o presente a sabedoria, o carinho e a força que essas memórias nos oferecem.
Que cada gole de café, então, seja mais do que uma pausa na rotina. Que seja também uma oportunidade de saborear o presente com mais consciência, enquanto acolhemos com ternura as lembranças que nos visitam. Que possamos encontrar, no calor da xícara e na profundidade desses sentimentos, inspiração para viver o agora de forma mais plena e conectada, honrando o passado que nos trouxe até aqui e construindo um futuro com ainda mais significado. E você, que memórias e sentimentos o seu café costuma despertar? Adoraríamos saber as suas histórias e reflexões nos comentários abaixo. Afinal, compartilhar nossas experiências também é uma forma deliciosa de saborear a vida.
Referências:
Rizzi, R. (2023). O que é: Nostalgia. Psicologa Rita Rizzi;
Martins, G. d’O. (2019). “Filosofia da Saudade” de Afonso Botelho e António Braz Teixeira. Centro Nacional de Cultura.)