“O caráter é, de longe, a melhor carta de recomendação”
Charles Spurgeon, pregador inglês do século XIX, nos deixou uma frase que ecoa com força especial nos dias de hoje: “O caráter é, de longe, a melhor carta de recomendação.” Em um mundo onde a imagem parece valer mais que a essência, onde o parecer frequentemente supera o ser, essa afirmação nos convida a um mergulho profundo sobre o que realmente importa na construção de uma vida íntegra.
O café que agora bebemos passou por um longo processo antes de chegar à nossa xícara. Da semente ao fruto, da colheita à torrefação, cada etapa exigiu cuidado, tempo e dedicação. Não seria o caráter humano algo semelhante? Construído dia após dia, escolha após escolha, em um processo muitas vezes silencioso e invisível aos olhos apressados do mundo?
Aristóteles, em sua “Ética a Nicômaco”, já nos ensinava que “a virtude moral é uma consequência do hábito. Nós nos tornamos o que fazemos repetidamente. Ou seja: nós nos tornamos justos ao praticarmos atos justos, controlados ao praticarmos atos de autocontrole, corajosos ao praticarmos atos de bravura.” O filósofo grego compreendia que o caráter não é algo com que nascemos pronto, mas uma construção diária, fruto de nossas escolhas cotidianas.
Recentemente, fomos todos surpreendidos com notícias sobre descontos não autorizados em benefícios de aposentados. Milhões de pessoas, que trabalharam a vida inteira e agora deveriam desfrutar do merecido descanso, viram-se vítimas de um esquema que se aproveitou justamente da confiança depositada em instituições que deveriam protegê-las. Em nosso artigo anterior, “Sentemo-nos ‘à mesa’ e contemos tristes histórias sobre a morte dos reis…”, já havíamos tangenciado esse tema, sem nos aprofundar, mas agora ele ressurge com força, convidando-nos a refletir sobre a ética – ou a falta dela – em nossa sociedade.
Quando pensamos nos quase 500 mil cidadãos que, em um único dia, precisaram informar que não reconheciam os descontos feitos em seus benefícios, não estamos apenas diante de números frios, mas de vidas, de pessoas que confiaram e viram essa confiança traída. E aqui, a frase de Immanuel Kant ganha uma dimensão especial:
“A moral, propriamente dita, não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade.”
(Immanuel Kant)
O filósofo alemão nos convida a pensar que a ética não é apenas um conjunto de regras para facilitar a convivência social, mas um caminho para a dignidade humana. Quando escolhemos agir eticamente, não o fazemos apenas para evitar punições ou para receber recompensas, mas porque reconhecemos no outro a mesma humanidade que habita em nós.
É fácil, diante das luzes da ribalta, exibir uma imagem de retidão. Mas quem já sentiu o calor de um café entre as mãos, numa manhã qualquer, sabe que há mais do que aquilo que aparece na superfície. O aroma que sobe é feito de tempo, de esperas silenciosas, de processos internos que acontecem quase em segredo. Assim também são as grandes entregas humanas: acontecem longe dos olhos, no sobressalto íntimo de perceber-se insuficiente — e, mesmo assim, necessário.
Confúcio, em sua sabedoria milenar, nos aconselhava: “Coloque a lealdade e a confiança acima de qualquer coisa; não te alies aos moralmente inferiores; não receies corrigir teus erros.” Palavras que, apesar dos séculos, continuam a nos desafiar. Em um tempo em que a lealdade parece um valor em extinção, em que a confiança é frequentemente traída, o sábio chinês nos lembra que a verdadeira grandeza moral está em reconhecer nossos erros e corrigi-los, não em nos aliarmos àqueles que abandonaram os princípios éticos.
Charles Spurgeon, o mesmo que nos fala sobre o caráter como a melhor carta de recomendação, também nos alertava: “A pior coisa que pode acontecer a um homem é pecar e ainda assim ser feliz.” Essa frase nos confronta com uma realidade incômoda: a capacidade humana de normalizar o erro, de conviver com a falta de ética sem que isso perturbe nossa consciência. Quando deixamos de sentir o peso de nossas falhas éticas, algo profundamente humano se perde em nós.
Quando observamos o caso dos descontos indevidos, não estamos apenas diante de uma questão legal ou burocrática, mas de uma profunda questão ética. Alguém, em algum momento, tomou decisões que afetariam negativamente a vida de milhões de pessoas vulneráveis. E aqui, a pergunta que ecoa é: como chegamos a esse ponto? Como permitimos que valores tão fundamentais como a honestidade, a transparência e o respeito pelo próximo fossem deixados de lado?
Aristóteles nos lembra que “o excesso e a deficiência são uma marca do vício e a observância da mediania uma marca da virtude.” O filósofo grego nos convida a buscar o equilíbrio, a justa medida em todas as coisas. Não se trata de ser perfeito, mas de buscar constantemente o aprimoramento moral, reconhecendo nossas falhas e trabalhando para superá-las.
Não subimos a um trono, mas abraçamos uma cruz invisível, sentindo de antemão o peso, a renúncia, a quase solidão, mas bem amparados pelo Espírito Santo. Como nos lembra Madre Teresa, “Deus não exige que tenhamos sucesso, apenas que sejamos fiéis.” A santidade não está nos grandes feitos visíveis, mas na fidelidade cotidiana, nas pequenas escolhas que fazemos quando ninguém está olhando.
Que este novo escândalo, que afeta tantos de nossos idosos, seja não apenas motivo de indignação passageira, mas um convite à reflexão profunda sobre os valores que estamos cultivando em nossa sociedade. Como cristãos, somos chamados a ser sal da terra e luz do mundo, a viver de acordo com princípios éticos que transcendem as conveniências do momento.
Spurgeon também nos ensina que “não somos o caramelo da terra, somos o sal da terra, algo que o mundo tem vontade de cuspir e não de engolir.” Ser ético, viver de acordo com princípios cristãos, nem sempre nos tornará populares ou bem-vindos em todos os círculos. Mas não fomos chamados para agradar ao mundo, e sim para transformá-lo através de nosso testemunho de vida.
Em um tempo em que escândalos éticos parecem se multiplicar, em que a confiança nas instituições é constantemente abalada, a frase de Spurgeon ressoa como um chamado à reflexão: “O caráter é, de longe, a melhor carta de recomendação.” Não são os títulos, as posições ou as aparências que definem quem realmente somos, mas as escolhas que fazemos quando acreditamos que ninguém está olhando.
E enquanto terminamos nosso café, deixo uma última reflexão: a ética não é apenas um conjunto de regras externas, mas uma disposição interna, um compromisso pessoal com valores que transcendem o tempo e as circunstâncias. Como nos lembra C.S. Lewis, “Integridade é fazer a coisa certa, mesmo quando ninguém está olhando.”
Que possamos, cada um à sua maneira, contribuir para a construção de uma sociedade mais ética, mais justa e mais humana. Não através de grandes discursos ou ações espetaculares, mas através das pequenas escolhas cotidianas que, como grãos de café cuidadosamente selecionados, darão sabor e aroma à nossa existência e à daqueles que nos cercam.
E assim, com o último gole de café, renovamos nosso compromisso com a ética, com a integridade e com os valores cristãos que, mais do que nunca, precisam iluminar nosso caminho em tempos de tantas sombras morais.
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