O Breve Reino das Decisões
Reflexões sobre coragem, cotidiano e o fascínio universal de escolher.
Nestes dias em que o mundo aguarda pelo início do Conclave para a escolha de um novo Papa, é impossível não pensar no simbolismo das grandes decisões. As imagens dos cardeais sob a cúpula da Capela Sistina, mergulhados em rituais seculares, ilustram com solenidade o momento em que se define, ali, o destino não apenas de uma instituição milenar, mas, de certo modo, de milhões de pessoas. Mas, distante dessas cúpulas e holofotes, nos damos conta de como tantos de nossos próprios rumos — tão anônimos, mas não menos significativos para nossas pequenas órbitas — também se desenham ao redor de mesas, entre xícaras de café e taças de vinho.
Talvez seja, mesmo, um tipo de ingenuidade pensar que o cotidiano não se mistura com a História, que nossos gestos miúdos não espelham, em miniatura, o que há de solene nos eventos que se gravam nos livros. Quando revisitamos a memória dos cafés históricos — aqueles recantos cheios de fumaça onde se debatia ardorosamente entre tilintares de porcelana —, vemos neles um palco onde pulsava intensa a filosofia das decisões: cada conversa era um pequeno conclave, cada xícara uma declaração silenciosa de intenções. Entre goles e olhares intensos, dúvidas e confidências, as vidas iam ganhando forma, quase sem que os protagonistas percebessem.
E não é diferente conosco. Estamos permanentemente rodeados de bifurcações, algumas tão sutis quanto a escolha entre adoçar o café ou deixá-lo puro. Essas encruzilhadas cotidianas, aparentemente banais, são ensaios para bifurcações maiores, aquelas que pesam nos ombros e fazem o tempo parecer suspenso, como se, por um segundo, estivéssemos sob a mesma cúpula secular dos grandes conclaves.
Quantas decisões marcantes não são tomadas em rituais cotidianos, sob a “cúpula” do amanhecer ou à mesa do jantar? O café da manhã apressado onde aceitamos um novo desafio, a pausa da tarde em que ponderamos uma mudança radical, aquela conversa noturna, quase sussurrada, em que se define o futuro de uma família. Todos esses são rituais particulares, mas impregnados da solenidade das grandes escolhas.
Há, porém, aquela espécie particular de decisão que dissolve a paisagem ao redor e nos deixa completamente a sós com o peso da escolha.
“Decidir é sempre um ato de coragem, ainda que de fora pareça apenas rotina.”
Quando se trata de mudar de cidade em busca de um sonho incerto, assumir a responsabilidade por um erro com consequências duradouras, optar por um tratamento difícil ou simplesmente encarar a necessidade de seguir em frente quando tudo pede permanência — é impossível delegar. Podemos ouvir todos os conselhos, pesar cada opinião, mas, no fim, a assinatura que selará o novo rumo será apenas nossa. Nesses momentos, a mente se transforma em palco iluminado por um só refletor, habitado por medos, esperanças extremas, argumentos apaixonados contra silêncios consternados. O futuro desenha cenários com cores de promessa ou neblina do arrependimento. A xícara de café, nessas horas, já não é só bebida — converte-se em confidente, abraço morno contra a ansiedade, presença concreta enquanto, por dentro, a tempestade se desenrola.
Nessas horas cruza a lembrança de personagens históricos e literários, eternamente confrontados com escolhas monumentais que espelham, em escala aumentada, nossas próprias angústias íntimas. Shakespeare, em sua genialidade, nos presenteou com o drama de Brutus em seu romance “Júlio César”, atormentado pela ideia de agir contra aquele que ama — tudo pelo que julga ser o bem maior de Roma. Diante da encruzilhada, ele se despede do sono e do sossego, sendo consumido pela responsabilidade que antecede o ato irreversível. Em seu monólogo noturno, revela a tormenta interna:
“Entre o agir numa coisa horrenda
(Júlio César, Ato II, Cena I – Tradução de Manuel Bandeira)
E o primeiro impulso, todo o interregno
É como um fantasma ou sonho medonho.
O gênio e os instrumentos mortais
Estão então em conselho; e o estado do homem,
Como um pequeno reino, sofre então
A natureza de uma insurreição.”
Somos todos esse “pequeno reino” em insurreição em algum momento da vida, experimentando o tumulto entre razão e paixão, entre o dever e o desejo. A xícara de café, silenciosa, assiste à batalha humilde e universal entre “o gênio e os instrumentos mortais” — nossa razão, nossos temores e esperanças duelando até o voto final.
Mas nem todos os destinos se desenham em solidão profunda. Muitas decisões nascem, crescem e se transformam no calor de conversas compartilhadas. Quantas vezes ouvimos histórias de projetos revolucionários, grandes amizades ou embates sobre o futuro que florescem entre mesas de café, em reuniões familiares ou jantares intermináveis? No ambiente coletivo, a responsabilidade se fragmenta: o fardo pesa menos para cada ombro, mas o caminho se enreda em novas dificuldades. É o balé — por vezes desajeitado — das opiniões trocadas, das concessões negociadas, da busca incessante de um consenso que pode parecer uma miragem distante.
No trabalho, as ideias colidem enquanto as xícaras esfriam sobre a mesa, testemunhas inertes da contradição humana entre razão e ego. Em casa, decisões fundamentais — cuidar de idosos, investir economias, escolher escolas — dependem da costura paciente de afetos, argumentos e omissões. Há riqueza e força nas decisões coletivas: ao combinarmos perspectivas, criamos soluções mais criativas e robustas. Mas há também perigo na diluição da autoria, no consenso morno ou, ainda, na paralisia que nasce do medo de contrariar. O café servido nesses momentos é armistício temporário, convite à comunhão em meio à pluralidade.
Quando finalmente uma escolha é feita — seja na solidão angustiada, seja no coro das vozes múltiplas —, algo muda para sempre. O futuro, antes amplo e polifônico, comprime-se em uma estrada só, e a xícara, agora vazia e talvez já fria, celebra discretamente sua participação como testemunha. É nessa virada que entra em cena a taça: o cristal, o espumante, o vinho rubro. A celebração — grande ou pequena — marca a chegada a um novo ponto de partida. O brinde pelo risco assumido e pelo trecho percorrido transforma a decisão tomada em memória viva.
Vamos além: nem toda escolha soa doce ao paladar. Muitas vezes, a taça celebrada traz o sabor inesperado do fracasso, do arrependimento, da decepção — e brindar nesses momentos é, acima de tudo, um ato de maturidade: reconhecer que nem tudo dependeu de nós, que a vida é feita de trilhas sinuosas, repletas de variantes incontroláveis. O brinde, nesse caso, é homenagem ao caminho, não ao resultado; ao processo humano de errar, ajustar e aprender.
Mesmo quando tudo sugere repetição e marasmo, a verdade é que estamos permanentemente cercados de bifurcações, algumas tão sutis quanto o movimento quase automático de adoçar ou não o café. Pequenas decisões, mas que carregam em miniatura todo o poder transformador das grandes encruzilhadas.
Talvez essa seja a beleza e o drama do viver: a compreensão de que decidir é sempre corajoso, mesmo que quem vê de fora enxergue apenas rotina. O ciclo das escolhas é perpétuo: toda decisão — seja celebrada com champanhe ou revista em silêncios diante de uma xícara de café — cria um novo mapa, que por sua vez nos coloca adiante em outras bifurcações, exigindo sempre mais coragem, pausa, reflexão e, por vezes, um novo brinde.
E enquanto escrevo estas linhas, o mundo aguarda com respiração suspensa o resultado do Conclave — pronto para celebrar (para alguns milhões) ou simplesmente contemplar os rumos tomados por escolhas feitas (para outros tantos milhões), e uma vez mais, entre xícaras e taças. São grandes ou pequenas decisões, públicas ou íntimas, mas sempre carregadas do mesmo fascínio universal: a esperança de que, ao decidir, podemos transformar um pouco o curso da nossa história.
O ciclo não tem fim: a cada escolha, ergue-se uma nova xícara, uma nova taça, e — entre dúvidas, alegrias e recomeços — continuamos a escrever, um gole de cada vez, as linhas da nossa história única, irrepetível e profundamente humana.