“A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos” (Fernando Pessoa)

No Enquanto Tomamos Um Café…, onde normalmente compartilhamos nossa paixão pelo café, vamos explorar um tema que, embora pareça distinto, compartilha dessa mesma essência contemplativa: a filosofia das longas viagens. O que sentimos quando planejamos partir? Que expectativas criamos sobre o destino e sobre nós mesmos nesse novo lugar? E o que acontece quando finalmente chegamos, confrontando nossas fantasias com a realidade? Viajar não é apenas deslocar-se no espaço, mas também mover-se internamente, confrontando o conhecido com o desconhecido, o familiar com o exótico. É uma jornada que começa muito antes de fazermos as malas e continua muito depois de desfazê-las.

Sentar-se com uma xícara de café quente entre as mãos é, por si só, uma pequena viagem. O aroma que sobe, o calor que conforta, o sabor que desperta – tudo nos convida a uma pausa, um momento de introspecção em meio à correria do dia a dia. É um instante suspenso no tempo, onde a mente pode vagar livremente, talvez para paisagens distantes, para sonhos ainda não realizados ou para reflexões sobre a própria jornada da vida. E, assim como o café nos transporta momentaneamente, as longas viagens físicas nos oferecem uma oportunidade única de mergulhar em pensamentos mais profundos, especialmente sobre os sentimentos que cercam a partida e a chegada.

Quem nunca se pegou sonhando acordado com um destino distante, folheando um catálogo de viagens ou perdendo-se em fotografias de praias paradisíacas e cidades históricas? A expectativa é, talvez, uma das fases mais deliciosas do processo de viajar. É nela que construímos, em nossa mente, um lugar idealizado, um refúgio perfeito para nossas ânsias e desejos. Como descreve o filósofo Alain de Botton em sua obra “A Arte de Viajar”, somos facilmente seduzidos por imagens simplificadas – uma palmeira solitária contra um céu azul-turquesa, a fachada de um café charmoso numa rua de paralelepípedos. Essas imagens, muitas vezes banais, têm o poder de despertar em nós um profundo anseio por felicidade e transformação, levando-nos a embarcar em jornadas complexas e dispendiosas.

“A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens e sim em ter novos olhos.”

(Marcel Proust)

A força dessa antecipação reside em sua capacidade de nos oferecer uma fuga da rotina, uma promessa de renovação. Imaginamos não apenas o lugar, mas também a pessoa que seremos lá: mais relaxados, mais aventureiros, mais inspirados. Projetamos no destino a solução para nossas insatisfações cotidianas, acreditando que a mudança de cenário trará, inevitavelmente, uma mudança interna. No entanto, essa idealização carrega consigo o germe da desilusão. A realidade, como Botton aponta, raramente corresponde à perfeição de nossas fantasias. O exemplo extremo é o personagem Des Esseintes, do romance “Às Avessas” de J.-K. Huysmans, que, após vivenciar Londres intensamente através da leitura e da imaginação em Paris, decide cancelar sua viagem real por temer que a experiência concreta manche a beleza de sua visão idealizada.

Contudo, a discrepância entre expectativa e realidade não precisa ser vista apenas como fonte de decepção. Botton sugere que a realidade não é necessariamente pior, mas fundamentalmente diferente. Ao chegarmos a um lugar, somos confrontados não apenas com a palmeira da foto, mas com uma miríade de detalhes inesperados: o barulho do trânsito, o cheiro específico do ar, a textura do asfalto, a expressão no rosto dos passantes, a burocracia do aeroporto, o design do quarto de hotel que difere sutilmente do folheto. Esses elementos, que não faziam parte do nosso roteiro mental, compõem a verdadeira tapeçaria da experiência. Aceitar essa diferença, essa riqueza de detalhes não antecipados, é o primeiro passo para apreciar a viagem pelo que ela realmente é, e não pelo que imaginávamos que seria.

Se a expectativa é o sonho, a partida marca o início da travessia para a realidade. Mas entre a partida e a chegada existe um espaço-tempo muitas vezes negligenciado: o caminho. Seja ele percorrido em horas dentro de um avião, dias sobre trilhos ou semanas cruzando oceanos, o trajeto em si é uma parte fundamental da experiência filosófica da viagem. É nesse interlúdio, nesse deslocamento físico, que a ruptura com o cotidiano se torna mais palpável. Como aponta Mário Carlos Beni, ao resenhar a obra de Trigo:

“A viagem rompe a rotina do cotidiano, revela novos cenários e traz para a nossa vivência expectativas sempre surpreendentes. A viagem é um movimento externo e interno a nós mesmos.”

O movimento externo é evidente: estamos fisicamente nos movendo de um ponto A para um ponto B. Mas é o movimento interno que detém a maior riqueza. Longe das nossas referências habituais, das nossas tarefas e papéis sociais definidos, somos confrontados com o tédio, o desconforto, a impaciência (que podem ser quebrados tomando um café…), mas também com a possibilidade de observar o mundo e a nós mesmos de uma perspectiva diferente. O assento apertado do avião, a paisagem monótona que corre pela janela do trem, a espera no saguão do aeroporto – esses momentos “vazios” são, na verdade, convites à reflexão. Sem as distrações usuais, a mente pode divagar por territórios inesperados, questionar certezas, revisitar memórias ou simplesmente observar os detalhes do presente: a interação entre outros passageiros, a mudança gradual da luz, as próprias sensações corporais.

Esse estado de suspensão pode ser desconfortável, pois nos tira da zona de conforto e do controle que (ilusoriamente) temos sobre nosso dia a dia. No entanto, é justamente nesse desconforto que reside a oportunidade de crescimento. O caminho nos obriga a lidar com o inesperado, a exercitar a paciência, a adaptar-nos a circunstâncias que fogem ao nosso controle. É uma “microjornada” de autoconhecimento, onde aprendemos sobre nossos limites, nossas reações e nossa capacidade de resiliência. O simples ato de estar em trânsito nos coloca numa posição de vulnerabilidade e abertura, essenciais para absorver verdadeiramente o que o destino tem a oferecer. Finalmente, a chegada. O momento tão antecipado, o clímax da expectativa. E, como vimos com Botton, raramente ele corresponde exatamente ao que imaginamos. A praia pode estar mais cheia, o clima diferente, a cidade mais caótica ou talvez mais silenciosa do que prevíamos. A primeira reação pode ser de estranhamento, talvez até uma ponta de decepção por não encontrar o cenário perfeito da nossa fantasia. Mas é precisamente nesse desencontro que a verdadeira viagem começa.

A chegada nos força a abandonar o roteiro mental e a engajar com a realidade concreta, com toda a sua complexidade e imperfeição. É o momento de “preparar o olho para que veja”, como cita Beni ao referenciar Plotino, “enriquecendo o espírito para perceber além das aparências”. Somos convidados a observar os detalhes que talvez não estivessem no planejamento inicial: a arquitetura local, os sons da língua estrangeira, os costumes dos habitantes, os sabores da culinária. É um exercício de humildade e curiosidade, onde aprendemos a apreciar o lugar pelo que ele é, e não pelo que gostaríamos que fosse.

Mais do que um encontro com um lugar diferente, a chegada é também um reencontro consigo mesmo, mas numa nova perspectiva. Longe do ambiente familiar, nossas identidades habituais são postas à prova. Quem somos nós sem nossas rotinas, nossos trabalhos, nossos círculos sociais? A viagem nos permite experimentar outras facetas de nós mesmos, descobrir interesses adormecidos, testar novas formas de ser e interagir. Como Trigo sugere, a viagem, “como uma ciência maior e profunda, nos traz de volta para nós mesmos”. Ao nos confrontarmos com o “outro” – outra cultura, outra paisagem, outro modo de vida –, somos levados a refletir sobre nossa própria identidade, nossos valores, nossas crenças. A chegada não é apenas o fim do deslocamento físico, mas o início de uma exploração mais profunda do nosso próprio ser. Assim como toda partida pressupõe uma chegada, toda chegada eventualmente leva a um retorno. Voltar para casa após uma longa viagem é uma experiência agridoce. Trazemos na bagagem não apenas souvenirs, mas memórias, sensações e, quem sabe, uma nova perspectiva sobre a vida e sobre nós mesmos. O familiar pode parecer estranhamente diferente, ou talvez sejamos nós que mudamos.

O retorno é o momento de integrar a experiência, de tecer as novas percepções na trama do nosso cotidiano. As lembranças da viagem – um pôr do sol inesquecível, uma conversa com um desconhecido, o sabor de uma comida exótica, a superação de um desafio – tornam-se parte do nosso repertório interno. Elas podem colorir nossa rotina, inspirar novas ideias ou simplesmente nos lembrar da vastidão do mundo e das infinitas possibilidades da existência.

E é aqui que voltamos ao nosso café. Aquela xícara quente, que antes talvez fosse apenas uma pausa na rotina, pode agora adquirir um novo significado. Pode nos transportar de volta àquele café charmoso em Tel Aviv, àquela manhã quente em Dubai ou àquela conversa animada numa praça em Jerusalém. O simples ato de tomar café pode se tornar um ritual de rememoração, um portal para as paisagens internas e externas que a viagem nos revelou.

A transformação operada pela viagem raramente é estrondosa; ela acontece de forma silenciosa, sutil. Não nos tornamos outra pessoa da noite para o dia, mas algo em nós se deslocou, se expandiu. As longas viagens, com suas expectativas, seus caminhos desafiadores e suas chegadas surpreendentes, nos lembram que a vida, assim como o café, é rica em nuances, em possibilidades de descoberta e em momentos de profunda conexão – consigo mesmo e com o mundo ao redor. E, talvez, a maior lição seja que a jornada mais importante não é aquela que nos leva a lugares distantes, mas aquela que nos aproxima de quem realmente somos.

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Referências:

•BOTTON, Alain de. A Arte de Viajar. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. (Capítulo I: Da expectativa)

•BENI, Mário Carlos. Resenha Crítica: A viagem, caminho e experiência. Revista Rosa dos Ventos, 5(4), 659-662, out-dez, 2013.